Imaterial - Mário Lundum
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Texto de Sara Rodi
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Conheci o Mário e o Fado no mesmo dia. Do Fado já ouvia falar há muito, cantado por outros fadistas que – imaturidade minha, certamente – não haviam conseguido despertar em mim a genuína vontade de o conhecer melhor.
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Até que o vi e ouvi. O Mário e o Fado. Em uníssono, no centro do palco, cada um dando de si tudo o que tinha, numa simbiose mais-que-perfeita. Não podia gostar de um sem gostar do outro, porque em certos momentos chegavam a ser um só. Intensos, emotivos, por vezes desbragados – e nem sempre compreendidos por isso mesmo, porque os excessos afugentam quem evita o confronto com as suas próprias sombras.
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Confiantes e inseguros ao mesmo tempo, no intervalo de um silencioso compasso. Amados ou odiados, mas incapazes de gerar indiferença, porque nasceram para dar voz aos sentimentos de todos nós, arrepiando-nos a pele, ressoando-nos por dentro com simples palavras carregadas de Destino.
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O Fado percorreu o seu caminho, trilhou a sua história – que conheci pela voz do Mário, numa noite estrelada, em Cascais, onde aprendi o significado de Lundum, mas também de Maktub – e o Mário fez também o seu percurso, com alegrias e tristezas, sucessos e fracassos, amores e desamores, quedas e percalços. E o Tempo, que não existe senão para nos ensinar a respirar da forma certa, moldou-os, um e outro, cada um no Tempo certo, na Verdade de todas as coisas. O Fado, de maldito e pecador a símbolo de um povo, materializou-se Património Imaterial da Humanidade. O Mário, alma desassossegada que se foi despojando de tudo o que lhe adensava o percurso, depurou-se e imaterializou-se naquilo que lhe importa – naquilo que deveria importar a todos nós, se é que a Vida já me ensinou o suficiente. “Atitudes audazes, tudo o que fazes, memórias que trazes tornam-te imortal. O amor mais profundo, o melhor do mundo é imaterial...”
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“Imaterial” foi o primeiro tema do seu novo álbum que o Mário me deu a ouvir. Mantra de tudo o que viveu e aprendeu e quis deixar aos filhos da forma que melhor sabe, cantando. Sorte a nossa, que alguém o tenha convencido a partilhar “Imaterial” neste álbum, deixando de lado os receios de ser melodia simples, letra sem artefactos. E quem disse que é preciso complicar? Chamei-lhe mantra como podia ter-lhe chamado versículo sagrado. Segredo, simples e direto – e, ainda assim, tão difícil de cumprir – para se ser feliz.
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Rendi-me depois à "Gaivota" com o Mestre Zeca Medeiros. Nele a força, no Mário a doçura. Yin e Yang comovente, que é também tributo à forma bonita como o Fado interliga gerações – e não por acaso num fado tão emblemático como “Gaivota”.
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Deixei-me depois arrebatar pela dor e a agonia (“Alforria”), a melancolia e a estranheza de viver (“Canção da Tecedeira”), sofrimento libertador que o Fado nos permite. E dissequei depois o Fado e o Fadista em “Fadista Louco”, “Fado Indignado” e “Fado Lopes”, situando-o em Lisboa – a Lisboa boémia do Mário – em “Senhora do Monte” e “Não sei, meu amor, não sei”. Com desamores pelo meio, num agitado “Triplicado” ou numa admiravelmente trinada “Estrela da Tarde”.
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Que bonito trajeto pela história do Fado e pela história do Mário, sentindo “tudo de todas as maneiras” - diria Fernando Pessoa. Pessoa que escreveu em 1929 que “o Fado é o cansaço da alma forte”. Cansaço natural de quem tem lutado por fazer o que mais gosta, mas resiste. Porque o Fado é também Resiliência, e o Mário é disso um bom exemplo.
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O Mário canta porque é seu destino cantar. E quando sobe ao palco, não se leva só a si, leva-nos a todos consigo, para esse espaço sem espaço e esse tempo sem tempo onde é desfiado, lentamente, o nosso destino comum…
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Obrigada Mário.
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